UM RESUMO SONHOU DA HUMANIDADE
Imaginai um mundo interior que fosse fechado. Sois convidados a empurrar a porta. Esquecei tudo o que aprendestes sobre o que deveis pensar sobre a arte. Tirai, por favor, os ouropéis dos a-priori e do «isto faz-me pensar em…». Sentai-vos, peço-vos: estais em casa de David Kessel.
A partir de agora as suas obras vão levar-vos pela mão. Não pelo intelecto, que não lhe interessa verdadeiramente na tela. Não pelos sentimentos, é demasiado púdico para fazer montra deles. Pelo mão, está bem. Pedir-vos-á alguns minutos do seu tempo, algumas horas ou uma fidelidade para todo o sempre, vós é que vedes.
Pinta e fala franco na sua pintura. De segredos, saberemos apenas o que se imaginar. Necessário será dizer que as pistas são múltiplas: do pássaro à mão, da porta ao espelho, da escada às estrelas, os símbolos
impõem-se. Veremos também chaves, janelas, cigarros, mulheres de ombros redondos e saiotes rodados, todas representações caras a Freud – mas em David Kessel não são mais, por vezes, do que chaves, janelas, cigarros, mulheres… Vamos sem dúvida ficar um pouco perdidos, daquele desvario delicioso pois, salvo raras exceções, não exista ponta de tragédia nos seus quadros. Ademais, a requintada educação de David Kessel exige que a angústia por si própria revista os adornos da poesia ou da metáfora.
Aqui, é a festa da vida! Cada parcela de tempo, cada momento de existência são de tal modo preciosos que o pintor os engasta como vitrais numa linha de chumbo. Isola os sujeitos para melhor combiná-los àquilo que lhes dá eco na tela. Esse traço que delimita o sujeito é, na verdade, uma aura de vibrações múltiplas que lança sinais a um outro sujeito no quadro. Vejamos este pássaro, tem certamente um companheiro de aventura não longe. Essa forma triangular sobre o chapéu da senhora ali, na esplanada de um bistrot do velho Paris, reencontrá-lo-emos no reflexo de um copo, no seu alfinete, no seu sapato. David Kessel joga com as correspondências, as linhas e as cores complementares. Cria assim uma ligeira dissonância, um cuac inaudível, uma voluntária aproximação harmónica, como um impercetível desequilíbrio conduzindo à mais segura vertigem. É o que faz dele um artista terrivelmente humano e adorável. Vede dessa forma, essas personagens com olhos de cor ou de forma dissemelhante que dizem essa decalagem, ou a diferença de tamanho entre dois sujeitos que se encontram, no entanto, no mesmo plano. «Chez le barbier» oferece um dos mais significativos exemplos: o barbeiro e o seu cliente por um lado, e o seu reflexo no espelho por outro são, com toda a lógica, os mesmos sujeitos, mas alguns instantes decorreram entre a imagem e a sua representação no espelho. Ínfimos detalhes dizem-nos que o tempo (quanto?) passou: a mão fechou a revista, as cabeças estão viradas,
os objetos mexidos… As personagens ou sujeitos de David Kessel afixam as suas próprias elipses, roçagares, improváveis acasos, tudo o que caracteriza o género humano e o afasta da perfeição para a qual tende.
David Kessel é também o anti-absoluto, a indulgência, a surpresa, a corrente de ar, o encontro inesperado, a admiração permanente. A vida, portanto.
Surpreendido por estar vivo, nunca se afastou da candura dos verdadeiros sábios. Como toda a criança que se preza, gosta de brincar. O sagrado assim como o pagão são submetidos a um jogo nobre e suave, nunca chocante. Nada é mais fácil para um artista do que chocar e a maioria envereda por essa senda em nome da liberdade egotista de criar, da liberdade política de denunciar, da liberdade conformista de se crer marginal, etc. David Kessel não revindica nada disso, joga apenas e fá-lo com o prazer daquele que agradece ao seu criador e ao tempo presente. Nele, o pormenor de um chapéu ou o seio de uma mulher torna-se místico como um fragmento do Templo!
Admirado por viver, dizia eu. A sua história expô-lo muitas vezes a nunca nascer, a nunca ser, a nunca durar. Cada manhã preciosa é, portanto, uma festa, um nascimento redobrado de reconhecimento. Quando se ama a vida como ele ama, é que se aprendeu a caminhar com as sombras. Segurar os seus fantasmas pela mão e falar-lhes, é já domesticá-los, desencoraja-los, torna-los até simpáticos. Se me compraz dizer que David Kessel é um pintor claro é porque a sua obscuridade não é dissimulada. O questionamento do qual não faz economia faz, por contraste, realçar a sua claridade. Candura, mas não ignorância, alegria sem evitamento. De resto, oferece-nos muitas vezes vinhetas, espécies de lupas incrustadas na composição do quadro, que guiam o olhar para um detalhe que sem isso talvez tivesse passado despercebido: um canto de céu mais sombrio, uma esquina de rua mais inquietante, um objeto sublimado. Duma assentada, o quadro inteiro é reinterpretado.
A inspiração é múltipla e desmultiplicada.
Igualmente pintor de objetos, quase escultor portanto, arrisca-se nos totens, espelhos ornamentados, para-ventos, adegas para cigarros, louça, todos suportes destinados a ser apreendidos em três dimensões.
Assim é para o fresco mural que tem que se adaptar ao seu ambiente. O risco é um jogo.
Justamente, a recente série «Intérieurs» dá a ver o homem às garras do seu risco. Podemos ver um período mais sombrio na vida do pintor, encontro nela também muito humor, esse humor-educação que diz que nada é verdadeiramente grave, apenas dramático…
De um tema ao outro, de um suporte ao outro, David Kessel explora a sua vida que não é mais do que a nossa. É por isso que o seguimos de boa vontade. As suas incertezas são as nossas, assim como o seu espanto.
Os encontros improváveis entre formas e cores, a importância da fauna e da flora que são outras tantas transposições de nós mesmos ou da nossa inocência original, os objetos que sob o impulso de um pincel animista tornam-se sujeitos, somos nós. Transcendência? Sim. Esta reside no além do percetível, na zona do sensível e do não linguístico. Com ele estamos no mundo, e toda diferença de aparência se abole em prol do benefício do estar junto. A finalidade generosa do viver sendo um pré-requisito bem compreendido, agarra-se às formas do vivo e do bem vivo: bem “gozante” e bem “sonhante”.
David Kessel é um convite a viver.
NATHALIE SALMON