O mundo é colorido, não é: na cidade – as montras, os carros, as roupas – ou no campo – as árvores, as flores, a terra -, tudo é cor…Mas se, por acaso ou por sorte, viésseis a penetrar num estranho ateliê da rua de Presles, em Paris, antro onde trabalha o pintor David Kessel, sereis assolados por uma profusão de cores que crereis nunca haver visto. Sereis – literalmente, fisicamente – deslumbrados por uma explosão de vermelhos, de verdes, de amarelos, de ocres, de azuis, em comparação com as quais todas as cores que vindes de deixar na rua parecer-vos-ão desbotadas, insípidas… como que passadas.
E o primeiro «pensamento» que experimentareis – antes mesmo de ver -, é que não é normal, que é quase demasiado… e que isso soa como uma demonstração de força, de uma força de alegria, como uma réplica, quase que um manifesto: uma resposta às forças da Noite. E que essa alegria explode tanto mais que zomba do ódio e do homicídio: «Nós ainda estamos aqui, sim, e dizemos a nossa alegria, e exultamos, pois é bom deixar brotar a seiva da vida…», parecer-vos-ão gritar as cores loucas…
De seguida, pensareis, sempre antes de ver, que se tratam apenas de meras cores. E se elas são com efeito tão nítidas, essas cores, tão precisas, e o seu agenciamento tão sábio, tão construído, que isso já bastaria…
E teríeis pensado que David Kessel é um pintor «abstrato». Mas, aproximar-vos-eis, quero dizer que começareis lentamente a ver, e aperceber-vos-eis que essas cores têm formas. Que essas cores figuram. Portas, chaves, ou cadeiras. Escadas ou rabinos, ou palhaços, ou índios… E pensareis que Kessel é, portanto, um pintor «figurativo». Mas vereis também, um pouco mais tarde, mas ao mesmo tempo (talvez seja isso, ver) , que sob os seus ares de labirinto, as cores dessas formas (a menos que se trate das formas dessas cores), equilibram-se, respondem-se, correspondem-se. Correspondências de formas e de cores antes de serem figuras de palhaços ou de rabino, de escadas ou de chaves (ninguém, aliás, pode subir ou descer essa escada, e se esse palhaço se abrisse as veias, de certeza que delas correria somente tinta)… Kessel, pensareis então, não é tão «figurativo» quanto isso, ele que, há instante, não era tão «abstrato» quanto isso… Kessel ou: a Pintura… é pintura. O que pinta Kessel deixar-vos-eis pensar então, não é tal cigarro ou tal Dandy, não, o que pinta Kessel, é que ele os pinta. Kessel não pinta objetos, cenas ou «quadros», pinta a pintura. E tudo o esta pode. Até à moldura que, por uma vez, não enquadra a pintura, mas que se faz enquadrar por ela! Ou desenquadrar… (Em Kessel, os quadros em si mesmos são as portas que ele pinta neles). Com uma série de vinhetas que, como os caixilhos das edições de arte didáticas, engrossam tal «detelhe» de um quadro, Kessel, quanto a ele, não mostra, contrariamente aos cubistas que pintavem sobre uma mesma superfície todos os lados de um dado, ou o perfil escondido de um rosto, o que não se pode ver, mas… o que se vê. O que se vê realmente quando se vê. Isto é o mesmo rosto, ou o mesmo copo, diferente. Diferente dele próprio, no mesmo tempo. O tremido da realidade. A vibração essencial. No mesmo tempo, tal rosto jovial é também sinistro (tal vivo é também morto, ou o inverso, e tal porta, aberta e fechada…).
Mas pintar esse outro rosto tomou tempo, não foi? Se aquilo que nos mostra Kessel são vários quadros num só, vários caixilhos num mesmo caixilho (não cessa de desenquadrar essa construção, a «realidade), mostra-nos também, talvez Kessel, ou o pintor do tempo de pintar
O que antes parecia somente alegria, exultação, riso, inocência, continha a maior intelig~encia da imagem.
É ela a verdadeira inimiga da noite. As cores vivas de Kessel iluminam a noite. Não objetos ou rostos (que afogaria, “bon vivant”, com luz, aniquilando, assim, a noite). Não, não. Kessel ilumina… a Noite. A noite em si mesma: dá a ver, alegremente, de forma lúdica, luminosamente, a Ténebra (ela detesta isso).
Kessel, ou o grande inimigo do lado obscuro da força.
Daniel MESGUICH